14 de mar. de 2009

Manifesto Espiritual de uma Materialista Atéia

Outro dia tive uma conversa com outro materialista e chegamos à conclusão que há uma diferença entre nós: como ele eu sou atéia e materialista, só que eu acredito em espírito, ele não.

Mas que samba do crioulo doido, que coisa é essa? Como é possível ser atéia, ser materialista e acreditar em espírito? Vou me explicar por partes, porque acredito que a discussão dessas noções é muito importante. Vou nessa ordem: Ateísmo, Materialismo e Espírito.

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Ateísmo

Ateu é, primeiramente, alguém que tem uma crença, por isso ele é diferente do agnóstico. Para o agnóstico a questão de se existe um deus ou não está suspensa (com isso se quer dizer que a questão é deixada de lado, sem resposta) ou por achar que não é possível respondê-la, ou por considerá-la uma questão sem importância. Eu acredito que é possível responder a questão e que essa resposta é muito importante, por isso sou atéia. O agnóstico pode ou não ser crente. Ele é crente se acredita – como Santo Agostinho e a fábula do anjo disfarçado de guri tentando botar o oceano num buraquinho – que a mente humana não alcançaria a resolução do enigma. Ou seja, ele acredita que existe a possibilidade de haver mais coisas entre o céu e a terra. O agnóstico não é crente quando o que ocorre é que ele apenas deixa a questão de lado, por considerá-la uma grande bobagem (eu também não sei muitas coisas sobre o ciclo de vida do siri, mas isso não faz de mim uma crente. P.s: não acho bobagem a vida do siri)

Já o ateu, como adiantei, é um crente, pois ele acredita que não existe um deus. Por isso o diálogo entre teístas e agnósticos é sempre mais fácil do que entre teístas e ateus. Um exemplo é uma história que ocorreu comigo: Num dos cursos onde dei aula, havia um professor de Francês que tinha por hobby me pentelhar. Ele vinha da Costa do Marfim e acreditava em espíritos, algo como que as crenças de candombé. Então, certa feita, quando ele me perguntou algo como que se eu acreditava que haviam coisas entre o céu e a terra, eu disse que era atéia e perguntei como se diz isso em Francês. Ele respondeu "fou", ao que eu retruquei que eu sabia o que fou significa e que não, je ne sui pas fou. Dai ele perguntou se eu considerava bobagem tudo aquilo que ele acreditava. Entre a cruz e a espada, eu levantei as mãos como que me rendendo, e disse que sim. Então ele, já bravo, disse que eu não respeitava a crença dele. Eu disse que não se tratava disso, e que não fui eu quem levou a conversa às vias de fato, que eu não ataquei a crença dele, apenas respondi à pergunta, e que era ele quem não respeitava a minha crença. Eu acredito que é bobagem, ponto. Vê só? Não há diálogo possível entre estas duas espécies de crentes. Há a possibilidade de ser político, de dizer mentiras, ser cortês, mas se chegam às vias de fato dá briga.

Há a possibilidade sim, de encontrar coisas belas nessas crenças e de ser capaz de ver que o afã por uma sociedade justa tem algo de cristão, mas isso não implica em crença teísta.

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Meus antídotos contra o teísmo, ou porque sou atéia

Não é preciso comentar sobre a injustiça do mundo: é só olhar para a África, por exemplo, e veremos o mais bem acabado retrato do que eu quero dizer.

Então, em que pé fica o deus dos teístas? Se ele é onisciente e onipotente, decorre dai três hipóteses:

1ª hipótese: Deus é sádico. Se tudo ocorre conforme a sua vontade, então ele brinca com as vidas de seres humanos inocentes e impotentes, como o moleque que se diverte em explodir formigueiros. Não passaria de um filho-da-puta. Portanto, rezar para um ser tão irascível não tem lógica, pois ele fará o que lhe der na telha. Sustentar a hipótese de que deus existe em confronto com os fatos de tantas barbaridades me parece, de resto, uma tarefa vã.

2ª hipótese: a minha preferida: deus não existe e ponto. Tudo o que ocorre no mundo é porque a matéria existe (há várias teorias de surgimento do universo), houve o surgimento do planeta Terra e dos seres humanos. O homem é o lobo do homem, e é por isso que há tanta barbaridade. No entanto, a questão do homem ser o lobo do homem não é de natureza "natural", mas política.

3ª hipótese: Deus existe, mas não intervém. Essa é a hipótese do deísmo, do qual falarei abaixo. Implica em jogar fora a idéia de um deus interventor no mundo. Mas, se ele não intervém, isto implicaria ou num deus que não se importa, e por isso mesmo sádico, retornando à primeira hipótese, ou num deus IMpotente, ao invés de onipotente. Há variações nessa hipótese, mas de qualquer forma não vale a pena rezar por ele, pois ele não intervirá, ou não poderá intervir.


Outro termo nesta equação é o deísmo. O deísmo constrói um outro tipo de deus: um deus que constrói o mundo, com suas leis, e a partir deste momento, não intervém. A imagem d'O Relojoeiro Cego, de Dawkins, não é ruim, apesar de que eu não concordo com uma dos termos do debate que se deu entre ele e William Paley, pois ambos têm um ponto em comum, que é: eles aceitam que haja o relógio.

O “Relógio” seria uma metáfora para o mundo e suas leis. Neste modo de ver, não há acidentes nem escolha: todo o funcionamento do mundo, desde a grande explosão até o comportamento do ser humano funciona dentro destas engrenagens. Pelo argumento de Dawkins, por exemplo, o comportamento humano se reduz a estratégias dos genes para (o gene, não o ser humano) sobreviver. Com isso ele cria uma nova entidade, um ser, chamado Gene, que faz estratégias, sendo que o ser humano e seu livre arbítrio não passam de ilusão.

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Materialismo

Materialista é uma categoria ampla: alguns deles acreditam que só há explicações materiais para os fenômenos humanos. Há versões do materialismo que (sou levada a crer) transformam o “Material” num outro deus; Um deus controlador de tudo. O Capital se transforma assim, de pseudo-ator, em ator.

Mas há outros materialistas. Entre as diversas variações possíveis, creio ser materialista por não acreditar num Idealismo puro (como explico em outro post), apesar de não acreditar num materialismo puro. Como explico, creio que fenômenos "material” e “ideal” não são fenômenos distintos. O problema com estas noções é muito mais velho do que nós e está imbuído na nossa forma de pensar, pois somos herdeiros de uma tradição filosófica (que vem dos gregos antigos e que continua pelos tempos nas categorias com as quais raciocinamos) que pensava o mundo a partir de dualidades: cabeça-corpo, homem-animal, razão-instinto, homem-mulher,criança,escravo, idéias-formas (categorias platônicas), espiritual-material.

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O Espírito

Estas questões todas postas, eu me pergunto: É possível separar o homem de seu espírito? O que vêm a ser “espírito”?

Apesar dos fenômenos - material e ideal, por exemplo - não serem de fato fenômenos distintos, apesar da separação ser de certo modo artificial, também não é possível dizer que ela não ocorra, ou que não podemos usá-la para analisar a vida humana em seus momentos. Todo ser humano passa pelo momento da reflexão, da escolha e da ação (ou não-ação, que pode ser considerada forma de agir). Se considerássemos que todos estes “momentos” se dão no tempo real em momentos distintos (o que não é verdade, pois agimos enquanto pensamos e agimos sem pensar e refletimos sobre a ação depois de agir), ao considerarmos toda a sociedade humana podemos dizer que os momentos “pensar” e “agir” não estão sincronizados de forma que se possa compor com eles “movimentos” da sociedade: não temos fases "Ideal" e "Material".

Estas dualidades que herdamos na nossa forma de pensar devem ser objeto de reflexão crítica e não deve-se, suponho, tratá-las como objetos arcaicos, destinados à lata de lixo. (Recicle!:). Ao descartar um dos pólos desta ambiguidade, o resultado é que conservamos o outro, não como uma categoria que dá conta de tudo, mas como categoria perneta, amputada do outro membro com o qual nasceu. O descarte não redunda, penso, numa nova forma totalizante, que a todos os fenômenos abarca, mas em uma espécie de lobotomia, que desassocia as ambigüidades existentes entre lobo esquerdo e direito.

Acredito que todo ser humano tem um espírito MORTAL. Em outras palavras, o fenômeno ao qual escolho chamar “espírito” acontece junto com a carne e depende dela (talvez a carne também dependa do espírito em algum grau, não só porque inscrevemos na carne nossos rituais e escolhas culturais em formas supérfluas, como a roupa, a tatuagem e a maquilagem, mas também porque a carne está sujeita a todas as escolhas – e suas conseqüências temporárias e duradouras – que fazemos na vida).


O que vem a ser o que escolhi chamar de Espírito? Se o ser humano não é um simples reflexo de seus genes, também não o é um simples reflexo da cultura. A noção de “subjetivo” já está por demais gasta e banalizada para conseguir atingir aquilo que eu creio que a idéia de um espírito mortal atinge. Pois é mais cabível que a idéia de um espírito mortal atinja aquele que pensa muito mais fundo tanto no que o homem tem de aspectos sociais quanto contra-culturais, mas, muito importante também num aspecto moral.

Dos aspectos sociais: decorre da idéia que o ser humano é mais do que um espécime de homo sapiens isolado de seu ambiente. O ambiente em que ele surge foi historicamente constituído e por isso ele é um “ser de sua época” (assim como é um ser de sua classe e posição social, das várias formas como sua sociedade o rotula, do local onde nasceu, etc). Diga-se, de passagem, que a noção de “Meme” é ri-dí-cu-la: é apenas um sofisma com o qual Dawkins tenta dar conta de explicar tudo por seu conceito perneta de Gene.


Para o aspecto que guarda potencialidades contra-culturais (e entendo isto as forças dentro da cultura que tentam contrapor seus aspectos totalitários resultantes das formas de dominação) é importante entendermos que o ser humano não é socialmente determinado. Se fosse só isso, ele não teria uma capacidade que me é cara, da auto-determinação, do livre-arbítrio (entendidos fora da chave liberal) e da revolta. O ser humano faz escolhas dentre suas necessidades, suas possibilidades culturais, econômicas e políticas, mas não é possível determinar qual escolha será feita numa fórmula matemática em que aquelas necessidades e possibilidades apareçam como variáveis. A equação nunca se fechará.


Finalmente, o aspecto moral: a idéia de "subjetivo" não me atinge moralmente quando tento entender o que se perde quando uma vida humana é vítima de violência. Resulte ela em morte ou não. Seja da parte da vítima ou do assassino, do estuprador, do político que se corrompe ou de qualquer um que exerça seu poder sobre o outro. As noções de “subjetivo”, de “forma de pensar” e análogas, são por demais desencarnadas e também remetem a uma noção de ser humano desconectado de sua experiência e ação dentro da sociedade. É para mim preferível subverter uma idéia muito mais intocada pelas diversas formas de materialismo – do reducionismo de Dawkins aos mais bem intencionados ateus – e intocável da parte dos teístas: uma noção virgem – e por isso não banalizada - que está ai, pronta para ser subvertida, para que seja possível talvez, pensar o ser humano pelo dualismo, pela ambigüidade... de uma forma não perneta.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Meu problema estava em colocar o espírito em uma posição extra-humano, aparte da materialidade humana. Parece-me que a palavra espírito ainda carrega muito esse significado. Tanto que para subverter essa idéia "original" de espírito foi preciso adjetivá-lo (gritando) de mortal.

Recuperar a mortalidade do espírito é uma idéia genial. Retira a autoanimação do espírito e atrela à condição humana – com suas determinações social, ambientais, genéticas, mas humanas, não determinação em outro plano qualquer que como ateu acredito piamente não haver.

14/3/09  

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