Apatia e Absurdamento
Durante a manifestação de ontem, frente à Folha, fui encontrada por uma guria que era do centro acadêmico da Poli (USP), na época em que eu era professora do curso de línguas deles.
Ela estava brava (veja o rostinho dela na foto), frustrada, pois esperava que a manifestação fosse muito maior (talvez tão grande quanto o sentimento de ultraje de cada um de nós ali presentes). Eu, com ares maternais de quem participou de várias coisas na vida e de quem foi amiga de muitas pessoas que nunca se mexiam para nada, tentei consolá-la.
Já hoje, tomando café e visitando outros blogs, curiosa pra ver o que as pessoas tinham escrito a respeito da manifestação, encontro outras falas frustradas com o número de pessoas presentes.
Por isso resolvi escrever este post. Para que possa servir de apoio à reflexão de todos aqueles que fazem parte dessa blogosfera que sai às ruas. Como um amigo meu diz “É claro que eu tenho noção do que é o mundo real... é de onde vem o cara que entrega pizza..."
Mas se você tiver pouco estômago pra sociologuês eu entendo – as vezes nem eu tenho – sugiro que clique aqui pra ir direto aos finalmente.
_______________________________________
Para a surpresa de qualquer um que venha a ler este post, vou iniciar com um texto que fala de ficção científica e tentarei desenvolver linhas que levem à questão da mídia e da apatia.
Susan Sontag escreveu em 1965 um texto chamado The Imagination of Disaster, onde fala sobre o cinema de ficção científica. Devo avisar que este é um texto que me fascina tanto que é difícil pra mim usá-lo. O mais fácil vai ser então acompanhá-lo, por isso vou tentar traduzir aqui alguns trechos que considero relevantes. As conecções com a presença de “poucas” pessoas na manifestação contra a Folha irão emergindo ao longo do texto, se o leitor tiver paciência de ir clicando nos links (que são notas minhas). Ou, melhor, sugiro uma leitura primeiro dos trechos do texto da Sontag, pra entender o que ela pensa no caso de cinema e depois uma releitura, acompanhando as notas, ou subversões do texto original, nos hiperlinks.
“A nossa é de fato uma era de extremidades. Pois vivemos sob a ameaça contínua de dois destinos temerosos, mas aparentemente opostos: a banalidade incessante e o terror inconcebível. É a fantasia, servida em largas porções pelas artes populares, que permite que as pessoas lidem com esses espectros gêmeos (...)”
“Mas uma das coisas que a fantasia pode fazer é normalizar o que é psicologicamente insuportável, nos acostumando, assim, (àquilo que não poderíamos suportar). No primeiro caso, a fantasia embeleza o mundo. No outro, ela o neutraliza.
A fantasia a ser descoberta nos filmes de ficção científica realiza ambas as tarefas. Esses filmes refletem ansiedades globais, e servem para amainá-las. Eles inculcam uma estranha apatia em respeito ao processo de radiação, de contaminação, e de destruição que eu, pessoalmente, acho pungente e deprimente. (...)”
“Certamente, se comparados aos romances de ficção científica, os respectivos filmes têm uma intensidade singular, e um dos motivos para isso é a sua capacidade de representação imediata do extraordinário: deformidades físicas e mutações, ataques com mísseis e foguetes, fazer ruir edifícios. Naturalmente, os filmes são fracos exatamente onde os romances de ficção científica (alguns deles) são fortes – em ciência. Mas em lugar de um exercício intelectual, eles podem fornecer algo que os romances nunca serão capazes de fornecer – elaboração sensual.”
“A sedução de tal desastre geral como fantasia é que ela nos libera de obrigações usuais. A carta de trunfo dos filmes de fim-de-mundo (...) é a grandiosa cena em que se descobre que Nova York ou Londres ou Tókio estão vazias, sua população inteira aniquilada. Ou, (...) o filme inteiro pode ser devotado à fantasia de ocuparmos a cidade deserta e começarmos tudo de novo - Robinson Crusoé em uma escala mundial.
Outro tipo de satisfação que estes filmes proporcionam é uma simplificação moral extrema - ou seja, uma fantasia moralmente aceitável na qual podemos dar vazão a sentimentos cruéis ou ao menos imorais. (...) Na figura do monstro vindo do espaço tanto o estranho, o feio, como o predatório convergem – e propiciam a fantasia de um alvo para nossa justa belicosidade se descarregar, e para a fruição estética do sofrimento e do desastre.”
“Coisas, objetos, máquinas têm um papel fundamental nestes filmes. Uma maior amplitude de valores éticos está corporificado no cenário destes filmes do que nas pessoas. As coisas, em lugar dos indefesos humanos, são o locus dos valores pois experimentamos a elas, e não as pessoas, como fontes de poder. De acordo com os filmes de ficção científica, o homem está nu sem seus artefatos."
“(...) há uma distorção historicamente especificável que intensifica a ansiedade, ou melhor, o trauma sofrido por todos na metade do século XX quando se tornou claro que de agora em diante, até o fim da história humana, todos nós iríamos passar nossas vidas individuais não apenas sob a ameaça da morte individual, que é certa, mas de algo quase insuportável psicologicamente – a incineração coletiva e extinção que poderia vir a qualquer momento (...)”
“Conta-se que em 1945 a população de Berlim recebeu sem grandes agitações a notícia de que Hittler tinha decidido matá-los a todos, antes que os Aliados chegassem (...) O que eu estou sugerindo é que a imagística do desastre nos filmes de ficção científica é acima de tudo o emblema de uma resposta inadequada.”
Chegando aos Finalmente
Caso você tenha tido a paciência de seguir o raciocínio que se desenvolve nas notas (os links internos) deste texto cão, quero novamente me desculpar pelo formato do texto (ainda estou em um duro processo de tentar subverter o texto da Sontag aos meus propósitos para um projeto de mestrado, e devo dizer que é quase tarefa vã).
Sei que sociólogos são conhecidos por escreverem teses polpudas sobre o óbvio ululante, mas retornando à questão de se foi pequena a participação na manifestação de ontem, a minha resposta pessoal é de que não.
Creio que a manifestação foi de bom tamanho, visto que não foi chamada pela própria mídia. A cultura política da apatia, da qual são parte ativa tanto o cinema quanto a grande mídia (e talvez outras manifestações culturais) não me leva a crer que uma manifestação chamada por blogs e com a organização de uma ONG – o MSM – que me parece ainda pequena, seja possível esperar uma grande passeata. Não me parece de forma nenhuma que a presença foi pequena. Pois por mais que haja muito mais gente lendo estes blogs - o blog Nas Retinas diz que foram mais de 100 blogs, com 60.000 visitas ao tema ditabranda – acho realmente surpreendente o número que compareceu ao ato. Lá, ouvi algumas vozes dizerem que acham que as pessoas tenham medo de ir a manifestações. Não creio que se trata de medo, mas de apatia - que é própria da nossa cultura. Essa apatia não é, a meu ver, herdeira do medo que enfrentavam todos aqueles que passaram pelo regime ditatorial (ou pelo menos não em sua maior parte). É herdeira, sim, daquilo que foi construído ao longo dos anos pelos instrumentos de poder que se formaram naquele regime. Em outras palavras, a apatia foi construída no decorrer de um longo processo cultural do qual a mídia é ator fundamental. Me deixou extasiada perceber que tantas pessoas foram capazes de se retirar desse processo esmagador de libidos e comparecer ao ato. Foram, portanto, uma multidão! E com um quê de libidinosa, ainda por cima!
____________________
artes populares Peço, aqui, que o leitor faça o esforço imaginativo de incluir a mídia, amplificando a noção de artes populares. Além de pensar a noção de fantasia, de Sontag, substituindo-a por uma outra de constructo, na medida que todo texto é algo construído e constrói uma noção da realidade. Mesmo que a fantasia do cinema tenha uma forma mais indireta de influir sobre a noção de realidade do cidadão médio, enquanto a influência dos textos que saem na mídia é mais direta (apesar de todo texto ser passível de interpretação daquele que lê).
Penso que a dupla tarefa da mídia se dá de outra forma. Pois, diferente do cinema de ficção científica, que tem a tarefa de embelezar, ou tornar estéticas as imagens da destruição, são poucos os momentos em que podemos dizer que a mídia faz uma estetização daquilo que de outra forma seria feio e nos faria sofrer, apesar de que há exemplos disso: um deles é a recente estetização da guerra à qual fomos submetidos a partir da Guerra do Golfo, como se pode ver na tese de doutorado de José Arbex Jr., Telejornovelismo - mídia e história no contexto da guerra do golfo (sorry, sem link) e muito provavelmente em seus livros. Entretanto, apesar do fenômeno de embelezamento do feio e do triste estar presente em muitas imagens usadas pela mídia, não creio que essa seja uma tarefa muito mais fundamental do que eu vou chamar de “eclipsamento”, por falta de melhor termo. O que eu quero dizer com isso é que ao colocar em foco questões quase desimportantes (ou mesmo factóides totalmente criados para assumir o primeiro plano das discussões) ao mesmo tempo em que deixa questões realmente importantes à margem (ou mesmo de fora dos tópicos abordados) a mídia consegue que os primeiros tomem o lugar dos segundos, ou, como metáfora, digamos que o factóide eclipsa o fato. Já a segunda tarefa da mídia, a neutralização, não difere em muito da tarefa que segundo Sontag, o filme de ficção é capaz de realizar. No caso da mídia, neutralização significará que assuntos quase-neutros se tornarão o foco do absurdamento do cidadão médio, enquanto que fatos que poderíamos qualificar como reais absurdos serão neutralizados, como eventos sem importância, ou mesmo, para o que diz respeito à mídia, inexistentes. Sei que sociólogos são famosos por dizer de forma complicada tudo aquilo que o leitor de blog já conhece.
elaboração sensual parêntese para elaborar acerca do que Sontag chama de “elaboração sensual”. "Sensual" não deve ser entendido no seu sentido mais específico “sexual”, mas num sentido mais amplo, relativo aos sentidos, em inglês: sensuous elaboration). No caso, com relação ao cinema de ficção científica, Sontag analisa as imagens de destruição presentes nesses filmes enquanto estética. No entanto, creio que podemos estender o conceito pensando em uma educação dos sentidos na nossa época e sua conecção com o que Freud chama de "principio de realidade" (mais sobre o conceito freudiano clique aqui os primeiros 3 primeiros parágrafos do texto de Leonardo Fontes sumarizam bem o conceito, mas vale a pena ler o texto inteiro). Em outras palavras, minha preocupação é entender como uma educação dos sentidos pela mídia forma os nossos sentidos (em média) do que é e o que não é realidade, ou seja, por quais processos seria a mídia capaz de “configurar” nos sentidos do cidadão médio o que é “fato” e o que é “rebeldia sem causa”, ou coisa sem importância.
A simplificação moral da qual fala Sontag, não seria aparentada à simplificação não só moral como política realizada pela mídia? Este esquema já completou uns tantos aniversários (e sou incapaz de dizer quantas velinhas tem no bolo), mas na sua forma mais recente, pode aparecer como endemonização de um sujeito público, ou de um partido, para os quais todos os discursos raivosos se voltam. Isto tem, decerto, como objetivo imaginado, simplificar a ação política. Pois a ação política que se tiraria da visão de mundo proposta seria a aniquilação política daquele sujeito ou partido, por meio do voto popular em outro sujeito e partido. Outra forma de simplificação moral desemboca na neutralização do assunto, ou como algo sem importância (como é o caso das formas de participação popular, como exemplo a manifestação contra a Folha), ou como algo que está para muito além de nosso poder de ação, ou muito longe na história (de que a noção de conflito milenar para qualificar o etnocídio na faixa de Gaza, como diz Idelberg). E outras formas haverão.
o esmagamento da libido Uma volta aos termos freudianos. É possível entender a libido como o elemento da nossa psique que nos leva à ação. É ela a responsável por tomarmos atitudes que satisfaçam nosso desejo de prazer e nosso desejo de fugir à dor, e, portanto, sobreviver. Os instrumentos culturais de poder são bastante responsáveis por redirecionar nossa libido para ações inócuas, que não ferem o status quo: a catarse no cinema, que funciona como substituição das emoções vividas por emoções vivenciadas, a satisfação por meio do consumismo, a supervalorização do ato sexual nas modalidades quantidade, performance e sei mais o quê, e talvez muitas outras facetas que não sou capaz de avaliar no momento, são uma face desta moeda: representam a vazão da libido por meios inócuos no que diz respeito à mudança social. A apatia é a outra face. Assim como aquelas formas de vazão da libido esta também é cultuada, justificada, construída diariamente pelos atores mais poderosos da cultura.
corporificação de valores nas coisas é algo que não foi inventado por Sontag. Marx creio que foi o fundador dessa tradição de análise em seu capítulo Sobre o Fetiche da Mercadoria em O Capital. Coloquei este trecho só pra puxar a sardinha para o consumismo: ao consumirmos coisas, consumimos valores embutidos nas coisas.
o apocalipse moderno. A hecatombe nuclear foi, durante os tempos de guerra fria, parcela importante de uma ideologia bélica de estado nos EU. O mundo todo sofreu dos restolhos dessa ideologia que nos vinham por meio da mídia e do cinema. Mas, caso você seja tão ou mais velho que eu, o medo que sentia de que um dos presidentes apertasse aquele cênico botão era um medinho à toa se comparado ao cidadão médio estadunidense que, até bem recentemente, pelo menos, tremia de pavor com a interrupção do sinal da televisão. Onde está o medo hoje? Por acaso não é evidente que o planeta está sendo destruído? Não há hoje um tanto de bombas nucleares distribuídas pelo globo capazes de exterminar a vida? Tanto aquele medo terrível – das décadas de 50 a 80 – quanto a total falta de ansiedade com respeito ao lento avanço das ameaças ao meio ambiente desta época são a insígnia de que algo não anda bem. Este algo é a falta de autonomia de cada um dos seres humanos. A incapacidade tanto de pensar quanto de dar respostas adequadas do cidadão médio.
a resposta adequada. Qual é a resposta adequada? O fato de estarmos numa tal heteronomia (a falta de autonomia) tanto de pensamento quanto de idéias para sermos capazes de responder e esta pergunta não quer dizer que a pergunta não seja válida. Mas para voltar à questão de se foi pequeno o protesto: Qual seria a resposta mais adequada àqueles que dizem que a ditadura foi uma ditabranda? Ir ao protesto, ou ficar em casa?
Ela estava brava (veja o rostinho dela na foto), frustrada, pois esperava que a manifestação fosse muito maior (talvez tão grande quanto o sentimento de ultraje de cada um de nós ali presentes). Eu, com ares maternais de quem participou de várias coisas na vida e de quem foi amiga de muitas pessoas que nunca se mexiam para nada, tentei consolá-la.
Já hoje, tomando café e visitando outros blogs, curiosa pra ver o que as pessoas tinham escrito a respeito da manifestação, encontro outras falas frustradas com o número de pessoas presentes.
Por isso resolvi escrever este post. Para que possa servir de apoio à reflexão de todos aqueles que fazem parte dessa blogosfera que sai às ruas. Como um amigo meu diz “É claro que eu tenho noção do que é o mundo real... é de onde vem o cara que entrega pizza..."
Mas se você tiver pouco estômago pra sociologuês eu entendo – as vezes nem eu tenho – sugiro que clique aqui pra ir direto aos finalmente.
_______________________________________
Para a surpresa de qualquer um que venha a ler este post, vou iniciar com um texto que fala de ficção científica e tentarei desenvolver linhas que levem à questão da mídia e da apatia.
Susan Sontag escreveu em 1965 um texto chamado The Imagination of Disaster, onde fala sobre o cinema de ficção científica. Devo avisar que este é um texto que me fascina tanto que é difícil pra mim usá-lo. O mais fácil vai ser então acompanhá-lo, por isso vou tentar traduzir aqui alguns trechos que considero relevantes. As conecções com a presença de “poucas” pessoas na manifestação contra a Folha irão emergindo ao longo do texto, se o leitor tiver paciência de ir clicando nos links (que são notas minhas). Ou, melhor, sugiro uma leitura primeiro dos trechos do texto da Sontag, pra entender o que ela pensa no caso de cinema e depois uma releitura, acompanhando as notas, ou subversões do texto original, nos hiperlinks.
“A nossa é de fato uma era de extremidades. Pois vivemos sob a ameaça contínua de dois destinos temerosos, mas aparentemente opostos: a banalidade incessante e o terror inconcebível. É a fantasia, servida em largas porções pelas artes populares, que permite que as pessoas lidem com esses espectros gêmeos (...)”
“Mas uma das coisas que a fantasia pode fazer é normalizar o que é psicologicamente insuportável, nos acostumando, assim, (àquilo que não poderíamos suportar). No primeiro caso, a fantasia embeleza o mundo. No outro, ela o neutraliza.
A fantasia a ser descoberta nos filmes de ficção científica realiza ambas as tarefas. Esses filmes refletem ansiedades globais, e servem para amainá-las. Eles inculcam uma estranha apatia em respeito ao processo de radiação, de contaminação, e de destruição que eu, pessoalmente, acho pungente e deprimente. (...)”
“Certamente, se comparados aos romances de ficção científica, os respectivos filmes têm uma intensidade singular, e um dos motivos para isso é a sua capacidade de representação imediata do extraordinário: deformidades físicas e mutações, ataques com mísseis e foguetes, fazer ruir edifícios. Naturalmente, os filmes são fracos exatamente onde os romances de ficção científica (alguns deles) são fortes – em ciência. Mas em lugar de um exercício intelectual, eles podem fornecer algo que os romances nunca serão capazes de fornecer – elaboração sensual.”
“A sedução de tal desastre geral como fantasia é que ela nos libera de obrigações usuais. A carta de trunfo dos filmes de fim-de-mundo (...) é a grandiosa cena em que se descobre que Nova York ou Londres ou Tókio estão vazias, sua população inteira aniquilada. Ou, (...) o filme inteiro pode ser devotado à fantasia de ocuparmos a cidade deserta e começarmos tudo de novo - Robinson Crusoé em uma escala mundial.
Outro tipo de satisfação que estes filmes proporcionam é uma simplificação moral extrema - ou seja, uma fantasia moralmente aceitável na qual podemos dar vazão a sentimentos cruéis ou ao menos imorais. (...) Na figura do monstro vindo do espaço tanto o estranho, o feio, como o predatório convergem – e propiciam a fantasia de um alvo para nossa justa belicosidade se descarregar, e para a fruição estética do sofrimento e do desastre.”
“Coisas, objetos, máquinas têm um papel fundamental nestes filmes. Uma maior amplitude de valores éticos está corporificado no cenário destes filmes do que nas pessoas. As coisas, em lugar dos indefesos humanos, são o locus dos valores pois experimentamos a elas, e não as pessoas, como fontes de poder. De acordo com os filmes de ficção científica, o homem está nu sem seus artefatos."
“(...) há uma distorção historicamente especificável que intensifica a ansiedade, ou melhor, o trauma sofrido por todos na metade do século XX quando se tornou claro que de agora em diante, até o fim da história humana, todos nós iríamos passar nossas vidas individuais não apenas sob a ameaça da morte individual, que é certa, mas de algo quase insuportável psicologicamente – a incineração coletiva e extinção que poderia vir a qualquer momento (...)”
“Conta-se que em 1945 a população de Berlim recebeu sem grandes agitações a notícia de que Hittler tinha decidido matá-los a todos, antes que os Aliados chegassem (...) O que eu estou sugerindo é que a imagística do desastre nos filmes de ficção científica é acima de tudo o emblema de uma resposta inadequada.”
Chegando aos Finalmente
Caso você tenha tido a paciência de seguir o raciocínio que se desenvolve nas notas (os links internos) deste texto cão, quero novamente me desculpar pelo formato do texto (ainda estou em um duro processo de tentar subverter o texto da Sontag aos meus propósitos para um projeto de mestrado, e devo dizer que é quase tarefa vã).
Sei que sociólogos são conhecidos por escreverem teses polpudas sobre o óbvio ululante, mas retornando à questão de se foi pequena a participação na manifestação de ontem, a minha resposta pessoal é de que não.
Creio que a manifestação foi de bom tamanho, visto que não foi chamada pela própria mídia. A cultura política da apatia, da qual são parte ativa tanto o cinema quanto a grande mídia (e talvez outras manifestações culturais) não me leva a crer que uma manifestação chamada por blogs e com a organização de uma ONG – o MSM – que me parece ainda pequena, seja possível esperar uma grande passeata. Não me parece de forma nenhuma que a presença foi pequena. Pois por mais que haja muito mais gente lendo estes blogs - o blog Nas Retinas diz que foram mais de 100 blogs, com 60.000 visitas ao tema ditabranda – acho realmente surpreendente o número que compareceu ao ato. Lá, ouvi algumas vozes dizerem que acham que as pessoas tenham medo de ir a manifestações. Não creio que se trata de medo, mas de apatia - que é própria da nossa cultura. Essa apatia não é, a meu ver, herdeira do medo que enfrentavam todos aqueles que passaram pelo regime ditatorial (ou pelo menos não em sua maior parte). É herdeira, sim, daquilo que foi construído ao longo dos anos pelos instrumentos de poder que se formaram naquele regime. Em outras palavras, a apatia foi construída no decorrer de um longo processo cultural do qual a mídia é ator fundamental. Me deixou extasiada perceber que tantas pessoas foram capazes de se retirar desse processo esmagador de libidos e comparecer ao ato. Foram, portanto, uma multidão! E com um quê de libidinosa, ainda por cima!
____________________
artes populares Peço, aqui, que o leitor faça o esforço imaginativo de incluir a mídia, amplificando a noção de artes populares. Além de pensar a noção de fantasia, de Sontag, substituindo-a por uma outra de constructo, na medida que todo texto é algo construído e constrói uma noção da realidade. Mesmo que a fantasia do cinema tenha uma forma mais indireta de influir sobre a noção de realidade do cidadão médio, enquanto a influência dos textos que saem na mídia é mais direta (apesar de todo texto ser passível de interpretação daquele que lê).
Penso que a dupla tarefa da mídia se dá de outra forma. Pois, diferente do cinema de ficção científica, que tem a tarefa de embelezar, ou tornar estéticas as imagens da destruição, são poucos os momentos em que podemos dizer que a mídia faz uma estetização daquilo que de outra forma seria feio e nos faria sofrer, apesar de que há exemplos disso: um deles é a recente estetização da guerra à qual fomos submetidos a partir da Guerra do Golfo, como se pode ver na tese de doutorado de José Arbex Jr., Telejornovelismo - mídia e história no contexto da guerra do golfo (sorry, sem link) e muito provavelmente em seus livros. Entretanto, apesar do fenômeno de embelezamento do feio e do triste estar presente em muitas imagens usadas pela mídia, não creio que essa seja uma tarefa muito mais fundamental do que eu vou chamar de “eclipsamento”, por falta de melhor termo. O que eu quero dizer com isso é que ao colocar em foco questões quase desimportantes (ou mesmo factóides totalmente criados para assumir o primeiro plano das discussões) ao mesmo tempo em que deixa questões realmente importantes à margem (ou mesmo de fora dos tópicos abordados) a mídia consegue que os primeiros tomem o lugar dos segundos, ou, como metáfora, digamos que o factóide eclipsa o fato. Já a segunda tarefa da mídia, a neutralização, não difere em muito da tarefa que segundo Sontag, o filme de ficção é capaz de realizar. No caso da mídia, neutralização significará que assuntos quase-neutros se tornarão o foco do absurdamento do cidadão médio, enquanto que fatos que poderíamos qualificar como reais absurdos serão neutralizados, como eventos sem importância, ou mesmo, para o que diz respeito à mídia, inexistentes. Sei que sociólogos são famosos por dizer de forma complicada tudo aquilo que o leitor de blog já conhece.
elaboração sensual parêntese para elaborar acerca do que Sontag chama de “elaboração sensual”. "Sensual" não deve ser entendido no seu sentido mais específico “sexual”, mas num sentido mais amplo, relativo aos sentidos, em inglês: sensuous elaboration). No caso, com relação ao cinema de ficção científica, Sontag analisa as imagens de destruição presentes nesses filmes enquanto estética. No entanto, creio que podemos estender o conceito pensando em uma educação dos sentidos na nossa época e sua conecção com o que Freud chama de "principio de realidade" (mais sobre o conceito freudiano clique aqui os primeiros 3 primeiros parágrafos do texto de Leonardo Fontes sumarizam bem o conceito, mas vale a pena ler o texto inteiro). Em outras palavras, minha preocupação é entender como uma educação dos sentidos pela mídia forma os nossos sentidos (em média) do que é e o que não é realidade, ou seja, por quais processos seria a mídia capaz de “configurar” nos sentidos do cidadão médio o que é “fato” e o que é “rebeldia sem causa”, ou coisa sem importância.
A simplificação moral da qual fala Sontag, não seria aparentada à simplificação não só moral como política realizada pela mídia? Este esquema já completou uns tantos aniversários (e sou incapaz de dizer quantas velinhas tem no bolo), mas na sua forma mais recente, pode aparecer como endemonização de um sujeito público, ou de um partido, para os quais todos os discursos raivosos se voltam. Isto tem, decerto, como objetivo imaginado, simplificar a ação política. Pois a ação política que se tiraria da visão de mundo proposta seria a aniquilação política daquele sujeito ou partido, por meio do voto popular em outro sujeito e partido. Outra forma de simplificação moral desemboca na neutralização do assunto, ou como algo sem importância (como é o caso das formas de participação popular, como exemplo a manifestação contra a Folha), ou como algo que está para muito além de nosso poder de ação, ou muito longe na história (de que a noção de conflito milenar para qualificar o etnocídio na faixa de Gaza, como diz Idelberg). E outras formas haverão.
o esmagamento da libido Uma volta aos termos freudianos. É possível entender a libido como o elemento da nossa psique que nos leva à ação. É ela a responsável por tomarmos atitudes que satisfaçam nosso desejo de prazer e nosso desejo de fugir à dor, e, portanto, sobreviver. Os instrumentos culturais de poder são bastante responsáveis por redirecionar nossa libido para ações inócuas, que não ferem o status quo: a catarse no cinema, que funciona como substituição das emoções vividas por emoções vivenciadas, a satisfação por meio do consumismo, a supervalorização do ato sexual nas modalidades quantidade, performance e sei mais o quê, e talvez muitas outras facetas que não sou capaz de avaliar no momento, são uma face desta moeda: representam a vazão da libido por meios inócuos no que diz respeito à mudança social. A apatia é a outra face. Assim como aquelas formas de vazão da libido esta também é cultuada, justificada, construída diariamente pelos atores mais poderosos da cultura.
corporificação de valores nas coisas é algo que não foi inventado por Sontag. Marx creio que foi o fundador dessa tradição de análise em seu capítulo Sobre o Fetiche da Mercadoria em O Capital. Coloquei este trecho só pra puxar a sardinha para o consumismo: ao consumirmos coisas, consumimos valores embutidos nas coisas.
o apocalipse moderno. A hecatombe nuclear foi, durante os tempos de guerra fria, parcela importante de uma ideologia bélica de estado nos EU. O mundo todo sofreu dos restolhos dessa ideologia que nos vinham por meio da mídia e do cinema. Mas, caso você seja tão ou mais velho que eu, o medo que sentia de que um dos presidentes apertasse aquele cênico botão era um medinho à toa se comparado ao cidadão médio estadunidense que, até bem recentemente, pelo menos, tremia de pavor com a interrupção do sinal da televisão. Onde está o medo hoje? Por acaso não é evidente que o planeta está sendo destruído? Não há hoje um tanto de bombas nucleares distribuídas pelo globo capazes de exterminar a vida? Tanto aquele medo terrível – das décadas de 50 a 80 – quanto a total falta de ansiedade com respeito ao lento avanço das ameaças ao meio ambiente desta época são a insígnia de que algo não anda bem. Este algo é a falta de autonomia de cada um dos seres humanos. A incapacidade tanto de pensar quanto de dar respostas adequadas do cidadão médio.
a resposta adequada. Qual é a resposta adequada? O fato de estarmos numa tal heteronomia (a falta de autonomia) tanto de pensamento quanto de idéias para sermos capazes de responder e esta pergunta não quer dizer que a pergunta não seja válida. Mas para voltar à questão de se foi pequeno o protesto: Qual seria a resposta mais adequada àqueles que dizem que a ditadura foi uma ditabranda? Ir ao protesto, ou ficar em casa?
4 Comentários:
Oi, cheguei aki atraves do Idelber (na verdade, o link que vc postou lah nao funciona, mas eu descobri que era devido ao "t" indevidamente dobrado).
Tbem estive na passeata, e percorri vários blogs tentando achar uma foto em que eu apareça (até agora, nada...). Concordo totalmente com vc qto à manifestação ter sido bem-sucedida. Acho mesmo que, na apatia e desmobilização atuais, conseguir reunir 300, 400 pessoas num sábado de manhã foi uma tremenda vitória.
Gostei muito do texto da Sontag que vc linkou (embora concorde com Camille Paglia que o trabalho dela decaiu sensivelmente depois que "deixou cair como batata quente" o interesse por cultura popular e "se refugiou no pedantismo e no preciosismo pós-estruturalista francês" (quá, quá, quá.... Paglia é hilária, não?). Mas não é o caso do texto em questão, pelo contrário). Acho que, sem dúvida, dá o maior´pé uma dissertação de mestrado a partir disso, sobretudo se vc elaborar melhor a correlação que faz entre a menção genérica de Sontag às artes populares e a mídia, talvez através da construção de paralelos entre a oposição terror/redenção dos filmes de ficção científica que ela menciona e a tendência midiática a processos semelhantes ao "romantizar" a notícia (no sentido de criar enredos, com evolução temporal e caracterização maniqueísta, estabelecida a priori, de personagens e situações).
Bom, deculpe a longa divagação. Tbem tô estreando um blog e postei um texto bem irônico sobre a polêmica da "ditabranda". Caso queira dar uma olhada e, se gostar, ajudar a divulgar, o endereçó é http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com/
Abs,
Mauricio.
Oi Flávia, conforme o prometido vim te fazer uma visita. Sou uma das pessoas com quem você conversou no ato de sábado. Sou um dos caras que veio de Goiânia. São quase 3 da manhã de uma segunda pra terça. Deve ser a adrenalina que ainda está alta.
Um abraço.
OI Wilson!!! Também demorou a passar essa energia elétrica que eu peguei de você e todos os outros presentes no ato. Obrigada pela visita, e apareça de vez em quando... caso você decida fazer um blog seu não deixe de deixar recado aqui (eu ainda estou pra fazer meu blogroll) e um grande abraço. Mande notícias de Goiânia (na verdade, eu aqui de Sampa admito que não faço idéia do que seja Goiânia... mas gostaria de saber. quem sabe este não seria um bom começo para um blog... mas acho que também já é hora d'eu tentar descobrir mais pelo google)
Ah Flávia, blog acho que ainda não. O que tenho pra falar cabe no espaço que blogueiros que admiro me dão. Já Goiânia, bem, depois do que aconteceu ontem só me passa pela cabeça ligar essa cidade a suas tragédias. Césio, Sonho Real..., enfim, sobre o césio 137 é domínio público mas gostaria de poder te mandar um documentário chamado Sonho Real. Dá uma idéia da energia e das emoções dessa cidade. Tens o meu email caso tenha interesse.
Forte abraço.
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial