Conto: Não sei onde estou
Foi num desses fins de semana como outro qualquer. Eu estava de férias e revia amigos. Tinha acabado de sair de uma seção de cinema quando tudo começou. Me despedi; fui pegar a minha moto, ainda pensando no filme. Tinha decidido estacionar em frente ao cinema, não no lugar de costume, e isso é tudo o que eu tinha feito de diferente, só isso. Fora isso, não consigo encontrar razões para o que me ocorreu então.
A rua era de mão dupla. Claro que, como tinha vindo por uma eu estava no sentido contrário do que precisava pra voltar. Tinha inferido que no vai e volta das mãos de trânsito eu poderia seguir a mão em que eu estava, virar na próxima ou na outra à direita, depois direita de novo, e estaria em direção de casa. Fui seguindo o fluxo. A próxima rua não era mão, a outra a mesma coisa. As placas proibiam cruzar à esquerda, o que era também uma opção de retorno. Fui seguindo e já não havia mais entradas à direita, quando resolvi entrar por uma ruazinha à esquerda, permitido ou não.
A ruazinha me punha na direção certa. Cheguei na avenida conhecida. Era apenas preciso cruzar, por que de novo eu estava no lugar certo em direção contrária. Mantive à direita, prestando atenção quando apareceria um cruzamento, então faria o retorno. Direita, direita, direita e cruza, nada mais simples. Pensava assim quando vi que o retorno era pelo centro da pista. Tarde demais, retorno já havia passado. Restava ir para a esquerda e esperar que houvesse outro retorno pelo centro da pista. Mas o outro retorno era pela direita e também ficou para trás. Fui seguindo e já não havia muitos carros comigo.
Eu havia perdido o último retorno e fui dar com uma avenida larguíssima: várias pistas de um lado, canteiro central e outras tantas pistas de outro. Preciso cruzar, pegar as pistas de lá, pensei, meio sem notar que eu estava sozinha naquele ambiente imenso. Fui seguindo um trecho longo até que vi um cruzamento. Estava decidida a fazer conversão proibida: simplesmente dar a volta no canteiro central e pegar a outra mão. Foi o que eu fiz. Mas, mal começo o caminho de volta quando se rompe o silêncio e uma outra moto vem na minha direção. Isto não está certo. Encostei. Parei a moto. Olhei pra trás com mais atenção e vi que o semáforo que deixei pra trás estava voltado pra mim. Passei alguns segundos sem acreditar naquela avenida imensa: quatro pistas de um lado, mais quatro de outro, e todos iam para a mesma direção. A direção que me distanciava de qualquer coisa remotamente conhecida.
Virei a moto e vi lá longe um posto de gasolina. Resolvi ir pra lá. Parei e peguei o mapa. Precisava descobrir onde estava. Era um cruzamento confuso. Uma rua cruzava aquela que me trouxe e esta se partia em três vias: uma que subia, como uma ponte, ao lado outra descia um vale e mais uma. Estava na esquina e precisava do nome das ruas pra me localizar, mas não havia placa. O poste torto demonstrava que esta havia sido arrancada de onde deveria estar com certa violência. Fui perguntar onde estávamos. Olhei no mapa e fiquei confusa: a esquina onde eu estava era como um ponto de onde partiam seis retas, mas no mapa só havia cinco. Estudei o mapa refazendo o meu caminho e cheguei à conclusão que este era definitivamente o lugar. A não ser por aquela por onde vim, era difícil decidir qual via faltava no mapa. O frentista era um moço de uniforme verde novo e boné. No mapa não ficava muito claro como faria o retorno e se dava mão, pois os nomes muito compridos cobriam as setinhas indicativas. Perguntei para o frentista como retornar e ele me disse “segue esta aqui, pega a primeira direita e direita de novo”. Olhei no mapa: fazer o que ele dizia me colocaria de volta naquela avenida larguíssima que voltaria pra onde eu estava. Ele me dizia “não olha o mapa não que isso vai te deixar doida”. Estudei o mapa de novo e resolvi uma rota. Iria descobrir in loco se era mão ou não. Agradeci. Subi na moto e o que ocorreu então foi sem precedentes.
A rota que decidira tomar era longa e sem cruzamentos, e a medida em que eu ia seguindo aumentava o meu desespero de ver aquela rua no meio da madrugada: deserta, todo o comércio fechado e sem esquinas, absolutamente sem esquinas. Não era assim no mapa, pensei. Ou talvez esta seja a via que não estava no mapa? Não sei. Mas me pareceu inconcebível que uma rua pudesse sair do centro velho de São Paulo, que é um emaranhado de vias, e não cruzar nada... Senti meu coração afundar, e na falta de saber o que fazer, fui em frente.
Estava apavorada, e já não sei dizer por quanto tempo segui em frente, acelerando ao máximo para fugir de tudo isso e chegar ao fim daquela via, pois toda a via tem de ter um fim. Mas a moto começou a falhar. Precisava achar outro posto. Fui em frente, até que a gasolina acabou.
O que vou contar agora pode parecer inconcebível, mas foi assim que ocorreu. Decidi voltar naquele posto que ficou pra trás. Comecei a empurrar a moto pela guia, o que pareceu precaução inútil contra um tráfego não existente. Estava só naquela rua sem fim. Decerto há pessoas dormindo nas partes de cima dos comércios, não me pareceu inconcebível que alguém, por segurança, praticidade ou economia, morasse na parte de cima da sua própria loja. Pensei até em vigias que dormissem no serviço (o que mais pode fazer um vigia?) que estivesse próximo. Talvez a idéia de estar tão completamente sozinha me incomodasse demais, por isso ia pensando nisso e empurrando a moto, mas o cansaço ia fazendo efeito.
Deixei a moto onde estava e continuei a pé. Andava muito e pensava no Paulo em casa (espero que ele esteja dormindo). Achei que a minha divagação e o efeito do cansaço tinham me feito fazer parar de prestar atenção no caminho quando me vi num emaranhado de ruelas sem nome, mas agora sei que algo muito diverso estava em curso: algo que não sei explicar, mas que arbitrariamente me conduzia para a armadilha onde me encontro neste mesmo momento e de onde já não vejo saída. Mas naquela hora senti tanta fadiga que achei que era só isso mesmo: fadiga. Decidi parar e ligar para o Paulo, mas que efeito isso poderia ter se não o de deixa-lo em pânico? Já que eu não sabia onde eu estava? Como ele poderia me ajudar? Pode ser que ele esteja me esperando preocupado, mas há uma chance de que ele esteja dormindo. Ligar não vai me ajudar enquanto não descubro onde estou.
Mas quanto mais andava mais confusa ficava naquela multitude de ruazinhas que serpenteavam e se juntavam e se cruzavam. Esquina após esquina, via um monte de casinhas no breu daquele lugar mal e porcamente iluminado. Por vezes tive a sensação de ver a mesma casinha de novo e de novo. Mas naquele lugar tudo se parecia, então não dei pela coisa.
Com muito cansaço, já estava me sentindo tonta, sentei na beira de uma mureta. Mal havia calçada naquelas ruelas que me pareciam cada vez mais estreitas. Peguei um cigarro, precisava pensar. Cara, eu precisava muito mais do que isso: eu precisava comer, precisava dormir, precisava me sentir de novo na segurança do meu apartamento, precisava de um abraço do Paulo. Mas eu acendi o cigarro: era o único luxo que eu podia me dar. O que fazer? acordar alguém? Esperar pelo amanhecer? Já não sabia, e me sentia miserável. Vou ligar pro Paulo, pensei, ele vai pirar, mas vai me ajudar a pensar. Minha mão foi pra dentro da bolsa e não dava com o celular. Revirei a bolsa. Botei tudo pra fora. Olhei em volta desconsolada. Nada de celular. Nada de telefone público tão pouco, pelo que eu pude ver do lugar.
A minha frustração foi grande. Joguei os conteúdos da bolsa no chão com raiva e gritei e chorei, e cacei cigarro e isqueiro pelo chão. Voltei com o cigarro aceso nas mãos tremendo e sentei de novo na mureta. Foi quando olhei para frente e vi a casa.
Era a casinha branca que havia me chamado a atenção antes, talvez por ser levemente mais branca que as outras. Achava que já tinha visto aquela casa. O céu já começava dar sinais de amanhecer (pelo menos eu achei isso). Aquela casa me capturou a atenção. Me parecia familiar. Foi quando me lembrei: Parecia com a casinha que tinha sido da minha avó, na periferia, onde eu morei quando criança, antes de mudarmos para o apartamento do centro. A casa tinha sido demolida para a construção do metrô. Com o dinheiro mudamos de lá e nunca mais voltei a ver aquela vizinhança. Impressionante, como lembra...
Agora mais calma resolvi retomar a minha andança. Logo ia amanhecer, as pessoas sairiam pra rua pra comprar pão pro café da manhã. Alguma delas poderia me dizer onde estou e como sair. Pode ser que até me permitissem usar o telefone se explicasse que estava perdida. Pensei em chamar um táxi. Logo tudo estaria acabado. Parei de andar e olhei para o lado e lá estava ela de novo: a casa branca. Mas não era possível, eu tinha ido reto. Deve ser outra casa. Sentindo um gosto amargo na garganta e o meu coração se contrair voltei a andar e em poucos minutos lá estava eu. Desta vez a casa estava do meu lado esquerdo, do outro lado da rua. Mas não havia erro: era ela. Tomei uma rua, andei três quadras. O céu se iluminava de um brilho branco. Vai chover, pensei. Já me sentia esgotada. Continuei pela quarta quadra, na esquina olhei à direita e lá estava ela de novo. Uma batida do meu coração pareceu se propagar pelo corpo todo. Olhei em volta. Estava apavorada. Na minha confusão botei a mão na cabeça e olhei em volta de novo. Tudo estava ficando desbotado, como se uma névoa estivesse entre mim e as coisas.
Isso foi há alguns dias. Ou pelo menos me parece. Neste momento me encontro sentada no centro de uma sala que já não parece tão grande quanto antes, esperando pelo momento em que afinal estas paredes se fecharão sobre mim. É difícil explicar o que aconteceu, mas vou tentar: voltei a me distanciar da casa. Andei quatro ou cinco quadras e dei com a casa de novo. Tentei outra rua. A mesma coisa se repetia. Ela ressurgia a minha frente, do meu lado direito, desta vez do esquerdo.
Então, a medida em que o tempo foi passando, notei que a distância que eu podia tomar da casa diminuía (não consigo entender como, mas isso não muda o fato de que foi assim). Três quadras, duas... Ao mesmo tempo, o que eu primeiro tinha tomado como amanhecer foi se tornando num desbotamento progressivo das coisas em volta. Toda vizinhança foi tomada por uma espécie de névoa. Quanto mais eu me distanciava da casa mais densa era a névoa e ela vinha se fechando sobre as quadras. No limite dessa névoa era quase que impossível respirar. O tempo foi passando, mas ninguém surgia das casas. Não houve barulho, nada. Desesperada, comecei a bater nas portas, tocar campainhas, chamar. Ninguém respondia. Era algo arrasador me encontrar só naquele lugar. Continuei a andar, o cansaço me consumia, andava como um bêbado, sem rumo. Gritava por socorro.
Agora já não havia rua lá fora. A névoa densa chegava de encontro à casa. Tentei com todas as minhas forças atravessa-la: sentia uma força, como se fosse a gravidade, mas me empurrando em direção à porta.
Nesse momento fui obrigada, ou talvez impelida, a entrar na casa. Lá uma lenta agonia se deu. Percebi, com horror, que a disposição dos quartos e mesmo a mobília era muito familiar. Parecia a cópia da casa do meu passado, a não ser pelo fato de que tudo era branco: o sofá, a mesinha de centro, a cadeira de balanço, a penteadeira, a cama, tudo. Mesmo então bati nas paredes e pedi socorro. Abria gavetas, mas já sabia exatamente o que encontraria dentro. Passaram-se dias (acho que foram dias, mas não tenho certeza, pois não vi a noite). Fui sentindo os cômodos diminuírem até desaparecerem e só a sala restou. Me refugiei nela. Neste momento estou sentada na sala, que agora é diminuta, e sinto a névoa se aproximar. Espero pacientemente pelo fim. Não vejo nada além da janela e sei que não conseguirei sair.
A rua era de mão dupla. Claro que, como tinha vindo por uma eu estava no sentido contrário do que precisava pra voltar. Tinha inferido que no vai e volta das mãos de trânsito eu poderia seguir a mão em que eu estava, virar na próxima ou na outra à direita, depois direita de novo, e estaria em direção de casa. Fui seguindo o fluxo. A próxima rua não era mão, a outra a mesma coisa. As placas proibiam cruzar à esquerda, o que era também uma opção de retorno. Fui seguindo e já não havia mais entradas à direita, quando resolvi entrar por uma ruazinha à esquerda, permitido ou não.
A ruazinha me punha na direção certa. Cheguei na avenida conhecida. Era apenas preciso cruzar, por que de novo eu estava no lugar certo em direção contrária. Mantive à direita, prestando atenção quando apareceria um cruzamento, então faria o retorno. Direita, direita, direita e cruza, nada mais simples. Pensava assim quando vi que o retorno era pelo centro da pista. Tarde demais, retorno já havia passado. Restava ir para a esquerda e esperar que houvesse outro retorno pelo centro da pista. Mas o outro retorno era pela direita e também ficou para trás. Fui seguindo e já não havia muitos carros comigo.
Eu havia perdido o último retorno e fui dar com uma avenida larguíssima: várias pistas de um lado, canteiro central e outras tantas pistas de outro. Preciso cruzar, pegar as pistas de lá, pensei, meio sem notar que eu estava sozinha naquele ambiente imenso. Fui seguindo um trecho longo até que vi um cruzamento. Estava decidida a fazer conversão proibida: simplesmente dar a volta no canteiro central e pegar a outra mão. Foi o que eu fiz. Mas, mal começo o caminho de volta quando se rompe o silêncio e uma outra moto vem na minha direção. Isto não está certo. Encostei. Parei a moto. Olhei pra trás com mais atenção e vi que o semáforo que deixei pra trás estava voltado pra mim. Passei alguns segundos sem acreditar naquela avenida imensa: quatro pistas de um lado, mais quatro de outro, e todos iam para a mesma direção. A direção que me distanciava de qualquer coisa remotamente conhecida.
Virei a moto e vi lá longe um posto de gasolina. Resolvi ir pra lá. Parei e peguei o mapa. Precisava descobrir onde estava. Era um cruzamento confuso. Uma rua cruzava aquela que me trouxe e esta se partia em três vias: uma que subia, como uma ponte, ao lado outra descia um vale e mais uma. Estava na esquina e precisava do nome das ruas pra me localizar, mas não havia placa. O poste torto demonstrava que esta havia sido arrancada de onde deveria estar com certa violência. Fui perguntar onde estávamos. Olhei no mapa e fiquei confusa: a esquina onde eu estava era como um ponto de onde partiam seis retas, mas no mapa só havia cinco. Estudei o mapa refazendo o meu caminho e cheguei à conclusão que este era definitivamente o lugar. A não ser por aquela por onde vim, era difícil decidir qual via faltava no mapa. O frentista era um moço de uniforme verde novo e boné. No mapa não ficava muito claro como faria o retorno e se dava mão, pois os nomes muito compridos cobriam as setinhas indicativas. Perguntei para o frentista como retornar e ele me disse “segue esta aqui, pega a primeira direita e direita de novo”. Olhei no mapa: fazer o que ele dizia me colocaria de volta naquela avenida larguíssima que voltaria pra onde eu estava. Ele me dizia “não olha o mapa não que isso vai te deixar doida”. Estudei o mapa de novo e resolvi uma rota. Iria descobrir in loco se era mão ou não. Agradeci. Subi na moto e o que ocorreu então foi sem precedentes.
A rota que decidira tomar era longa e sem cruzamentos, e a medida em que eu ia seguindo aumentava o meu desespero de ver aquela rua no meio da madrugada: deserta, todo o comércio fechado e sem esquinas, absolutamente sem esquinas. Não era assim no mapa, pensei. Ou talvez esta seja a via que não estava no mapa? Não sei. Mas me pareceu inconcebível que uma rua pudesse sair do centro velho de São Paulo, que é um emaranhado de vias, e não cruzar nada... Senti meu coração afundar, e na falta de saber o que fazer, fui em frente.
Estava apavorada, e já não sei dizer por quanto tempo segui em frente, acelerando ao máximo para fugir de tudo isso e chegar ao fim daquela via, pois toda a via tem de ter um fim. Mas a moto começou a falhar. Precisava achar outro posto. Fui em frente, até que a gasolina acabou.
O que vou contar agora pode parecer inconcebível, mas foi assim que ocorreu. Decidi voltar naquele posto que ficou pra trás. Comecei a empurrar a moto pela guia, o que pareceu precaução inútil contra um tráfego não existente. Estava só naquela rua sem fim. Decerto há pessoas dormindo nas partes de cima dos comércios, não me pareceu inconcebível que alguém, por segurança, praticidade ou economia, morasse na parte de cima da sua própria loja. Pensei até em vigias que dormissem no serviço (o que mais pode fazer um vigia?) que estivesse próximo. Talvez a idéia de estar tão completamente sozinha me incomodasse demais, por isso ia pensando nisso e empurrando a moto, mas o cansaço ia fazendo efeito.
Deixei a moto onde estava e continuei a pé. Andava muito e pensava no Paulo em casa (espero que ele esteja dormindo). Achei que a minha divagação e o efeito do cansaço tinham me feito fazer parar de prestar atenção no caminho quando me vi num emaranhado de ruelas sem nome, mas agora sei que algo muito diverso estava em curso: algo que não sei explicar, mas que arbitrariamente me conduzia para a armadilha onde me encontro neste mesmo momento e de onde já não vejo saída. Mas naquela hora senti tanta fadiga que achei que era só isso mesmo: fadiga. Decidi parar e ligar para o Paulo, mas que efeito isso poderia ter se não o de deixa-lo em pânico? Já que eu não sabia onde eu estava? Como ele poderia me ajudar? Pode ser que ele esteja me esperando preocupado, mas há uma chance de que ele esteja dormindo. Ligar não vai me ajudar enquanto não descubro onde estou.
Mas quanto mais andava mais confusa ficava naquela multitude de ruazinhas que serpenteavam e se juntavam e se cruzavam. Esquina após esquina, via um monte de casinhas no breu daquele lugar mal e porcamente iluminado. Por vezes tive a sensação de ver a mesma casinha de novo e de novo. Mas naquele lugar tudo se parecia, então não dei pela coisa.
Com muito cansaço, já estava me sentindo tonta, sentei na beira de uma mureta. Mal havia calçada naquelas ruelas que me pareciam cada vez mais estreitas. Peguei um cigarro, precisava pensar. Cara, eu precisava muito mais do que isso: eu precisava comer, precisava dormir, precisava me sentir de novo na segurança do meu apartamento, precisava de um abraço do Paulo. Mas eu acendi o cigarro: era o único luxo que eu podia me dar. O que fazer? acordar alguém? Esperar pelo amanhecer? Já não sabia, e me sentia miserável. Vou ligar pro Paulo, pensei, ele vai pirar, mas vai me ajudar a pensar. Minha mão foi pra dentro da bolsa e não dava com o celular. Revirei a bolsa. Botei tudo pra fora. Olhei em volta desconsolada. Nada de celular. Nada de telefone público tão pouco, pelo que eu pude ver do lugar.
A minha frustração foi grande. Joguei os conteúdos da bolsa no chão com raiva e gritei e chorei, e cacei cigarro e isqueiro pelo chão. Voltei com o cigarro aceso nas mãos tremendo e sentei de novo na mureta. Foi quando olhei para frente e vi a casa.
Era a casinha branca que havia me chamado a atenção antes, talvez por ser levemente mais branca que as outras. Achava que já tinha visto aquela casa. O céu já começava dar sinais de amanhecer (pelo menos eu achei isso). Aquela casa me capturou a atenção. Me parecia familiar. Foi quando me lembrei: Parecia com a casinha que tinha sido da minha avó, na periferia, onde eu morei quando criança, antes de mudarmos para o apartamento do centro. A casa tinha sido demolida para a construção do metrô. Com o dinheiro mudamos de lá e nunca mais voltei a ver aquela vizinhança. Impressionante, como lembra...
Agora mais calma resolvi retomar a minha andança. Logo ia amanhecer, as pessoas sairiam pra rua pra comprar pão pro café da manhã. Alguma delas poderia me dizer onde estou e como sair. Pode ser que até me permitissem usar o telefone se explicasse que estava perdida. Pensei em chamar um táxi. Logo tudo estaria acabado. Parei de andar e olhei para o lado e lá estava ela de novo: a casa branca. Mas não era possível, eu tinha ido reto. Deve ser outra casa. Sentindo um gosto amargo na garganta e o meu coração se contrair voltei a andar e em poucos minutos lá estava eu. Desta vez a casa estava do meu lado esquerdo, do outro lado da rua. Mas não havia erro: era ela. Tomei uma rua, andei três quadras. O céu se iluminava de um brilho branco. Vai chover, pensei. Já me sentia esgotada. Continuei pela quarta quadra, na esquina olhei à direita e lá estava ela de novo. Uma batida do meu coração pareceu se propagar pelo corpo todo. Olhei em volta. Estava apavorada. Na minha confusão botei a mão na cabeça e olhei em volta de novo. Tudo estava ficando desbotado, como se uma névoa estivesse entre mim e as coisas.
Isso foi há alguns dias. Ou pelo menos me parece. Neste momento me encontro sentada no centro de uma sala que já não parece tão grande quanto antes, esperando pelo momento em que afinal estas paredes se fecharão sobre mim. É difícil explicar o que aconteceu, mas vou tentar: voltei a me distanciar da casa. Andei quatro ou cinco quadras e dei com a casa de novo. Tentei outra rua. A mesma coisa se repetia. Ela ressurgia a minha frente, do meu lado direito, desta vez do esquerdo.
Então, a medida em que o tempo foi passando, notei que a distância que eu podia tomar da casa diminuía (não consigo entender como, mas isso não muda o fato de que foi assim). Três quadras, duas... Ao mesmo tempo, o que eu primeiro tinha tomado como amanhecer foi se tornando num desbotamento progressivo das coisas em volta. Toda vizinhança foi tomada por uma espécie de névoa. Quanto mais eu me distanciava da casa mais densa era a névoa e ela vinha se fechando sobre as quadras. No limite dessa névoa era quase que impossível respirar. O tempo foi passando, mas ninguém surgia das casas. Não houve barulho, nada. Desesperada, comecei a bater nas portas, tocar campainhas, chamar. Ninguém respondia. Era algo arrasador me encontrar só naquele lugar. Continuei a andar, o cansaço me consumia, andava como um bêbado, sem rumo. Gritava por socorro.
Agora já não havia rua lá fora. A névoa densa chegava de encontro à casa. Tentei com todas as minhas forças atravessa-la: sentia uma força, como se fosse a gravidade, mas me empurrando em direção à porta.
Nesse momento fui obrigada, ou talvez impelida, a entrar na casa. Lá uma lenta agonia se deu. Percebi, com horror, que a disposição dos quartos e mesmo a mobília era muito familiar. Parecia a cópia da casa do meu passado, a não ser pelo fato de que tudo era branco: o sofá, a mesinha de centro, a cadeira de balanço, a penteadeira, a cama, tudo. Mesmo então bati nas paredes e pedi socorro. Abria gavetas, mas já sabia exatamente o que encontraria dentro. Passaram-se dias (acho que foram dias, mas não tenho certeza, pois não vi a noite). Fui sentindo os cômodos diminuírem até desaparecerem e só a sala restou. Me refugiei nela. Neste momento estou sentada na sala, que agora é diminuta, e sinto a névoa se aproximar. Espero pacientemente pelo fim. Não vejo nada além da janela e sei que não conseguirei sair.
2 Comentários:
A idéia da casa branca é muito boa e você manteve bem o clima de tensão ao longo da narrativa. Lembrei de um filme de humor negro chamado "Depois de Horas"- vc viu?-, no qual a personagem, após passar por uma série de sufocos e de situações bizarras, diz em determinado momento que "tudo o que queria era voltar para casa".
Muito muito muito bom.
Nossa, amei mesmo, muito.
Parabéns.
Porque não manda pra publicar na OR lá da ECA?
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