Preconceito e Histórias de Família
Coube a uma tia-avó me introduzir ao estereotipo de negro. Eu morava com minha avó no Pari e fiz uma amiguinha, a filha de uma vizinha. Num desses dias em que acabei minha lição de casa, pedi à minha avó pra ir brincar com a Magda. Minha tia-avó entrou na conversa assim “a negrinha?”. Isso foi dito com uma entonação de nojo, que me marcou a memória. Felizmente eu abominava a minha tia-avó, por isso nunca deixei de ir brincar com a Magda. Devo dizer que a minha avó é uma das lembranças mais doces que tenho. Da boca dela jamais saíram agudezas. Eu nem discordava de ninguém quando estava com ela, pois sabia que ela não gostava disso. Que Sto Marx a tenha.
Morei com ela no Bairro do Pari, como já disse. O que eu não disse é que, naquela época ele era o bairro mais encortiçado de São Paulo. A vizinhança era uma comunidade das que se vê em poucas localidades de São Paulo hoje em dia: todos se conheciam, as crianças brincavam na rua e tinha sempre a mãe ou o pai de alguém de olho na mulecada. Havia uma distinção entre meninos e meninas: meninos tomavam conta da rua, meninas brincavam dentro das casas. Uma coisa de território, que só depois, examinando minhas recordações, vim a notar, pois devo à minha avó e à minha mãe o feito de poder circular entre as duas formas de socialização. Minha avó, como disse, nunca botou qualquer empecilho; já a minha mãe, ao saber que eu queria ir brincar na rua, me deu esta lição: "quando alguém vier pra cima de você, nem pergunte o que é: dá-lhe um sopapo, joga ele no chão e só depois pergunta o que foi". Pode parecer hilário, ou que eu saí por ai puxando briga, mas não foi o que ocorreu. Depois de ouvir isso da minha mãe, nunca me coloquei na posição de vítima. Ao me recordar, vejo que as outras meninas saiam correndo pra dentro de casa, a chorar, por qualquer puxão de trancinhas que um menino lhe aplicasse. Já a minha introdução a esse universo masculino se deu assim: Foi logo após ouvir o conselho de mamãe. Fui com um brinquedo (na verdade era uma torneira que virou brinquedo) para fora do portão e sentei-me na soleira. Veio um guri e deu um baita puxão na minha trancinha esquerda. Eu me levantei e fui em punhos (ou tapas, não me lembro bem) ao sujeito. Lembro-me da cara dele de surpresa e confusão, a fugir de mim, sem saber como reagir. Meninas nunca faziam isso. P.S. Eu não era maior que ele.
Fico pensando nestas outras meninas que foram educadas assim. Levou um puxão de trancinha, corre chorando pra casa, que é o seu lugar. O que você estava fazendo na rua?
Ainda hoje ouço histórias de mães da minha idade, que, bem observadoras, notaram que o tratamento de meninas e meninos é diferenciado. Uma dessas histórias é assim: Essa mãe leva a filha pra sala de aula, pré-primário. Chegando lá vê que as crianças estão brincando. Observa o espaço. Meninas se juntam em cantinhos e brincam sentadas, enquanto meninos correm pelo espaço inteiro. Um menino vem reclamar com a professora que uma das garotas pegou o carrinho (brinquedo da escola) e não lhe dá. A professora dá razão ao menino: com todo o jeito, retira o carrinho da menina e sugere que não é brinquedo adequado para ela. Aponta os brinquedos que estão à sua disposição.
É... meus amigos... a história é real. E é de anteontem.
Um dia desses (na verdaade faz uns dois anos) recebi um e-mail com o qual concordo. Dizia: “Preconceito é doença, e deve ser tratado”. Um amigo gay tinha mandado este em um spam, vindo de uma organização que propunha reflexões acerca do preconceito. Gostaria de ter feito o tratamento proposto, e já não me lembro mais qual foi o compromisso que me impediu de fazê-lo.
Na minha família não há só histórias bonitas sobre preconceito: cresci ouvindo aqueles motos “negro isso...” “negro aquilo...” (mas não a minha avó – ela preferia ficar em silêncio do que falar bobagem... espero que eu tenha herdado isso dela)
Uma história da minha avó, vim a conhecer só depois de ela morta. Recém casada com meu vô que morreu cedo (minha avó não tem nada a ver com isso), Veio a primeira briga feia – dessas que ocorrem com qualquer casal. Ele a empurrou e levantou a mão pra bater. Ela disse que não fizesse isso, senão ela iria revidar. Parece que disse “Eu te furo um olho”. Contam que meu avô – a história é conhecida da família, pois ele, confuso e com medo da minha avó, comentou com alguns parentes – disse “Você vai fazer o quê? É mais fraca do que eu” ao que minha avó (Sto Marx a tenha) respondeu: “É... mas você também dorme...”. Olha que coisa! E ela nem era leitor de Hobbes, para o qual destaco uma passagem em que ele diz que nenhum homem é tão fraco que não seja capaz de matar outro homem (isso faz parte da argumentação dele em O Leviatã contra as escolas que supunham que o poder político tenha se originado da força bruta).
Ai, avó... Se você está ai, ao lado de Sto Marx, quero deixar uma homenagem que não pude te fazer em vida.
Morei com ela no Bairro do Pari, como já disse. O que eu não disse é que, naquela época ele era o bairro mais encortiçado de São Paulo. A vizinhança era uma comunidade das que se vê em poucas localidades de São Paulo hoje em dia: todos se conheciam, as crianças brincavam na rua e tinha sempre a mãe ou o pai de alguém de olho na mulecada. Havia uma distinção entre meninos e meninas: meninos tomavam conta da rua, meninas brincavam dentro das casas. Uma coisa de território, que só depois, examinando minhas recordações, vim a notar, pois devo à minha avó e à minha mãe o feito de poder circular entre as duas formas de socialização. Minha avó, como disse, nunca botou qualquer empecilho; já a minha mãe, ao saber que eu queria ir brincar na rua, me deu esta lição: "quando alguém vier pra cima de você, nem pergunte o que é: dá-lhe um sopapo, joga ele no chão e só depois pergunta o que foi". Pode parecer hilário, ou que eu saí por ai puxando briga, mas não foi o que ocorreu. Depois de ouvir isso da minha mãe, nunca me coloquei na posição de vítima. Ao me recordar, vejo que as outras meninas saiam correndo pra dentro de casa, a chorar, por qualquer puxão de trancinhas que um menino lhe aplicasse. Já a minha introdução a esse universo masculino se deu assim: Foi logo após ouvir o conselho de mamãe. Fui com um brinquedo (na verdade era uma torneira que virou brinquedo) para fora do portão e sentei-me na soleira. Veio um guri e deu um baita puxão na minha trancinha esquerda. Eu me levantei e fui em punhos (ou tapas, não me lembro bem) ao sujeito. Lembro-me da cara dele de surpresa e confusão, a fugir de mim, sem saber como reagir. Meninas nunca faziam isso. P.S. Eu não era maior que ele.
Fico pensando nestas outras meninas que foram educadas assim. Levou um puxão de trancinha, corre chorando pra casa, que é o seu lugar. O que você estava fazendo na rua?
Ainda hoje ouço histórias de mães da minha idade, que, bem observadoras, notaram que o tratamento de meninas e meninos é diferenciado. Uma dessas histórias é assim: Essa mãe leva a filha pra sala de aula, pré-primário. Chegando lá vê que as crianças estão brincando. Observa o espaço. Meninas se juntam em cantinhos e brincam sentadas, enquanto meninos correm pelo espaço inteiro. Um menino vem reclamar com a professora que uma das garotas pegou o carrinho (brinquedo da escola) e não lhe dá. A professora dá razão ao menino: com todo o jeito, retira o carrinho da menina e sugere que não é brinquedo adequado para ela. Aponta os brinquedos que estão à sua disposição.
É... meus amigos... a história é real. E é de anteontem.
Um dia desses (na verdaade faz uns dois anos) recebi um e-mail com o qual concordo. Dizia: “Preconceito é doença, e deve ser tratado”. Um amigo gay tinha mandado este em um spam, vindo de uma organização que propunha reflexões acerca do preconceito. Gostaria de ter feito o tratamento proposto, e já não me lembro mais qual foi o compromisso que me impediu de fazê-lo.
Na minha família não há só histórias bonitas sobre preconceito: cresci ouvindo aqueles motos “negro isso...” “negro aquilo...” (mas não a minha avó – ela preferia ficar em silêncio do que falar bobagem... espero que eu tenha herdado isso dela)
Uma história da minha avó, vim a conhecer só depois de ela morta. Recém casada com meu vô que morreu cedo (minha avó não tem nada a ver com isso), Veio a primeira briga feia – dessas que ocorrem com qualquer casal. Ele a empurrou e levantou a mão pra bater. Ela disse que não fizesse isso, senão ela iria revidar. Parece que disse “Eu te furo um olho”. Contam que meu avô – a história é conhecida da família, pois ele, confuso e com medo da minha avó, comentou com alguns parentes – disse “Você vai fazer o quê? É mais fraca do que eu” ao que minha avó (Sto Marx a tenha) respondeu: “É... mas você também dorme...”. Olha que coisa! E ela nem era leitor de Hobbes, para o qual destaco uma passagem em que ele diz que nenhum homem é tão fraco que não seja capaz de matar outro homem (isso faz parte da argumentação dele em O Leviatã contra as escolas que supunham que o poder político tenha se originado da força bruta).
Ai, avó... Se você está ai, ao lado de Sto Marx, quero deixar uma homenagem que não pude te fazer em vida.
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